A guinada religiosa de Tolstói: Uma confissão
- Matheus Benites
- 15 de jul.
- 8 min de leitura
Imagine um homem sendo perseguido por uma fera selvagem. Na tentativa desesperada de escapar, ele corre até a beira de um poço e se lança para dentro. Mas a queda não é o fim. No meio do poço, ele se agarra a um galho frágil que cresce numa fresta da parede. A fera ainda o espera lá em cima. Lá embaixo, um dragão o espreita com as presas abertas, pronto para devorá-lo assim que ele cair. E como se isso não bastasse, dois ratos roem lentamente a raiz do galho. O tempo está passando. A queda é inevitável. Nesse instante de terror, o homem percebe uma gota de mel escorrendo por uma folha próxima ao galho. Ignorando tudo ao redor, ele estica o pescoço e lambe a gota. Eis a vida.
Como assim, a vida? Essa parábola não foi escrita por mim, é claro. Ela é contada pelo grande escritor russo Liev Tolstói em sua obra Uma Confissão. Tolstói está dizendo que, apesar de a vida ser evidentemente amarga, nós nos apegamos ao pouco de doçura que ela nos oferece. Mas por que? Era isso o que estava perturbando o escritor e o fez mudar radicalmente a sua visão do mundo e a maneira com que conduzia sua vida. Em Uma Confissão, Tolstói rasga sua alma e nos conta como, no auge da fama, riqueza e sucesso, ele chegou ao ponto de desejar a morte.Por quê? Porque a pergunta que corrói qualquer existência sincera finalmente o alcançou: Qual é o sentido da vida?

A CONFISSÃO COMO GÊNERO
Tolstói escreve suas confissões inspirado pelo modelo do filósofo Jean-Jacques Rousseau, que escreveras as dele no século 18. Mas a confissão como gênero foi inaugurada pelo filósofo Agostinho de Hipona na Antiguidade tardia. Faz-se necessário que nos detenhamos nas implicações deste peculiar gênero literário, talvez restrito a escritores que creem em Deus. De outro modo, em que medida uma confissão poderá mesmo ser tomada como genuína, absoluta?
Quando Agostinho escreve as Confissões, ele busca a iluminação. Ele sabe que Deus já sabe de tudo que ele confessa e até mesmo que ele vai confessar. Deus é o interlocutor ideal, porque Ele sabe se você mentir. Então não faz sentido escrever uma confissão falsa. Diversos homens já haviam escrito autobiografias antes de Agostinho, a dizer pelos Comentários de César. Porém, esses escritos eram o que ficou conhecido como RES GESTAE. Em latim, as coisas feitas.
Era uma narração de acontecimentos da vida de fulano ou ciclano, não um mergulho na interioridade de um sujeito que descobre, ou inventa, a si mesmo. Esta última é a novidade de Agostinho. É o que há de interesse literário e filosófico nas Confissões. Talvez as Meditações de Marco Aurélio fossem o que chegasse mais perto das Confissões antes das Confissões, que só poderiam existir em um contexto cristão. Mesmo o filósofo estoico com seu esforço autodidático não se aproxima do mergulho na subjetividade empreendido pelo bispo do norte da África. Seria tolo não reconhecer isto, ainda que a teologia de Agostinho seja algo que eu discorde bastante. Nas Confissões, o discurso é mera analogia da intuição pura. Quem ilumina a mente é o, suposto, Verbo Divino. Agostinho não seria o autor das Confissões, mas sim Deus, através de Agostinho. Agostinho seria a pena, cujas frases a redigir seriam todas tanto insuficientes quanto necessárias. Neste paradoxo, reside o gênero da confissão.

DO EPICURISMO AO NIILISMO
Tolstói começa narrando suas experiências de juventude, de modo bem direto, a partir da lembrança. E conta ao leitor como o mundo o encorajava ao autoaperfeiçoamento em todos os âmbitos, exceto o moral. Ele queria ser bom, mas era incentivado a ser importante, rico, respeitado, por todos ao redor. Ele escreve:

O escritor conta como esse estilo de vida foi apagando suas tendências anteriores de se tornar moralmente bom. Ele foi aceito pela casta de escritores, recebeu louvores e atenção por toda parte, acreditando que estava ensinando algo às pessoas com seus escritos, como faziam seus colegas, embora discordassem entre si e cada um estivesse fechado sobre si mesmo com a certeza absoluta. Ele comparou este mundo de escritores em São Petersburgo a um hospício. Então ele foi buscar redenção na vida familiar. Mas logo percebe que ali também não há nada diferente. Sua esposa e filhos são humanos, perdidos na mesma situação que ele, mesmo que ainda não tenham percebido. Tolstói passa a flertar com o suicídio. De modo tão natural quanto pensava no autoaperfeicoamento antes. Ele esconde as cordas em casa, para de caçar com espingarda, evita a solidão. Não porque tenha superado o desejo de morrer… mas porque tem medo de ceder a ele.
Ele diz: "Era como um homem que se perde na floresta escura e, ao dar cada passo, percebe que está ainda mais perdido…". Tolstói experimenta de modo bem literal aquilo que Albert Camus descreverá meio século depois como o sentimento de absurdo, um divórcio entre um homem e sua vida. Em certa passagem, ele escreve:

Essa é talvez uma das confissões mais nuas da literatura: O relato de alguém que, tendo conquistado tudo, descobre que a vida pode ser insuportavelmente vazia. Colocando em paralelo os ensinamentos de Buda, Sócrates, Schopenhauer e Salomão (no maravilhoso livro de Eclesiastes, o mais ateu da Bíblia, que atribui-se duvidosamente a Salomão), Tolstói concebe a vida como essa vontade de viver, que é o mesmo que o medo da morte, do nada, que é inevitável. Tudo está sobrando no mundo. Nada tem sentido. Tudo é vaidade. Tudo vai se esvair. O sábio morre da mesma forma que o tolo. Ninguém será lembrado.
Diante do absurdo, Tolstói enxergou apenas quatro saídas. A primeira era a ignorância — viver sem pensar, sem perceber a profundidade do problema, como tantos fazem, ocupando-se com os prazeres e rotinas da vida. A segunda era o hedonismo consciente — buscar o prazer mesmo sabendo que tudo terminará, como quem dança à beira do abismo. A terceira era o suicídio — o passo lógico para quem vê a vida como essencialmente sem sentido e tem coragem de encerrar tudo. E a quarta, aquela em que ele mesmo se encontrava, era a fraqueza — continuar vivendo não porque há um motivo, mas por hábito, covardia ou incapacidade de agir. Nenhuma dessas respostas o satisfazia. Ele não queria apenas sobreviver… queria uma razão para viver. E quando nem a ciência, nem a filosofia, nem a arte lhe deram essa razão, ele se voltou para onde nunca esperou encontrar sentido: na fé dos simples, na confiança silenciosa dos que vivem sem entender tudo — mas vivem.
VERDADE MISTURADA COM MENTIRA?
O escritor Liev Tolstói
No tempo de Tolstói, o vínculo entre Igreja e Estado era tamanho na Rússia tsarista, que a Igreja Ortodoxa obrigava os fiéis a rezar pela saúde do tsar e de seus familiares todos os dias. Isso é engraçado, em um sentido bisonho, porque mostra a ineficácia da prece. Carlos Orsi comenta no livro dos milagres que foi feito um estudo sobre esses comandos de prece para a população. Mesmo com todo mundo rezando por sua saúde, monarcas e líderes frequentemente morriam mais cedo do que camponeses simplórios e ordinários. Era de se esperar, dada a chuva de preces diárias, que os monarcas superassem em muito a qualidade e a qualidade de vida dos camponeses, mas não era o caso. Esse é um ótimo indício de que rezas não adiantam, podem apenas ter benefícios subjetivos para o bem-estar de quem reza.
Em certa altura de Uma confissão, o próprio Tolstói questiona essa prece diária pela saúde do Tsar que a Igreja ordenava. Justamente por chocar-se com a ideologia greco-russa, a obra Uma confissão, prevista para publicação na revista pensamento russo em 1882, foi barrada pela censura.
A fé que atraiu Tolstói não era essa. Não tinha dogma. Em meio ao abismo, quando o suicídio batia na porta, Tolstói começa a observar algo que ele mesmo desprezava: a fé das pessoas simples.
Camponeses analfabetos, lavradores, velhas devotas — gente que não refletia sobre Kant ou Darwin… mas que vivia com uma firmeza e uma tranquilidade diante da morte que ele invejava. Ele recebe Chegoliónok, um contador de histórias do campo, em sua fazenda e aprende com ele. Passa a admirar a figura do mujique russo, que então desprezava. O autor escreve:

Será que havia algo ali que ele não havia entendido? Então o autor de Guerra e Paz experimenta uma intrigante mudança de marcha, que, não obstante, há de se observar, nunca esteve ausente de sua literatura. A religiosidade, ainda que vaga, e a busca pelo bom moral, sempre estiveram ali, mesmo quando latentes. Uma Confissão não é o relato de uma iluminação, mas de um mergulho. Um processo lento, conflituoso e doloroso de uma reconstrução interior brutalmente honesta que talvez somente este gênero literário possibilite. Tolstói encontra na sua fé uma forma de viver, não porque ela resolve todas as perguntas,mas porque ela permite continuar vivendo apesar delas. Um filósofo analítico como eu só poderia se perguntar: ora, que tipo de sabedoria prática pode ser esta? Estão os filósofos cegos para uma dimensão inteiramente outra do conhecimento?
Há algo na experiência religiosa que nós, ateus, estamos deixando de perceber? Algo revelador sobre o sentido da existência que não pode ser capturado pela razão, pela lógica proposicional Existe conhecimento não-proposicional? Os antigos falavam de uma sabedoria prática. A sabedoria de Ulisses, na Odisseia, por exemplo, é algo que ele adquire com a experiência, e não em livros. Ou Tolstói teria articulado para si mesmo uma forma elegante e desesperada de autoengano? Quem diabos saberá? Não estou disposto a experimentar a fé prática, porque seria hipocrisia. Se eu preciso viver a fé prática para ater tal sabedoria redentora, eu fico com a ignorância da razão e da lógica, e penso que todo conhecimento pode ser traduzido em proposições e que a experiência de redenção ou iluminação do fiel pode ser explicada com a psicologia da crença, a sociologia e a antropologia.

Três anos depois de finalizar a redação de Uma confissão, Tosltói acrescentou um relato enigmático de um sonho em que ele se via em risco de queda em um abismo, mas percebeu que algo discreto o sustentava. Tolstói não se matou. Tolstói morreu em 1910, aos 82 anos. Antes de morrer, sua família dedicava-se a cuidar de sua saúde diariamente. Nos últimos dias, ele conversou e escreveu sobre a experiência da morte. Tendo renunciado ao estilo de vida aristocrático que sua nova visão de mundo desprezava, deixou sua casa no meio do inverno daquele ano, às escondidas, feito um andarilho.
A fé é a certeza do que não se vê, como escreveu Paulo. E ela, para Tolstói, é também o que dá sentido à vida. É o que permite ao ser humano não se matar. Para Tolstói, era claro que não havia tido ressurreição nenhuma, nem demônios. Mas podia ainda haver verdade ali, por trás daquela maneira simbólica e humana de buscar por ela e representá-la, e louvá-la. Mas fé não precisa ser religião, muito menos a religião majoritariamente praticada no país em que você nasceu. A fé, para um filósofo, pode ser um terreno que ele não entra. Pode ser a zona de uma promessa indefinida, de um postulado, de uma hipótese. Supondo que a vida valha a pena ser vivida, vou continuar vivendo.
E isso basta para mim, Matheus.
Nesta rebeldia da razão, que reconhece na fé religiosa e dogmática, nesta possível verdade que está amarrada às mentiras com linhas finíssimas, um absurdo maior do que o mundo naturalista darwiniano, newtoniano e einsteiniano, aceito com a humildade de um ser passageiro o peso de minha ignorância.
Referências bibliográficas:
BÍBLIA DE JERUSALÉM.
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo.Editora Record, 2020.
TOLSTÓI, Liev. Uma confissão. Editora Mundo Cristão, 2017.
HIPONA, Agostinho. Confissões. Penguin - Companhia das Letras, 2017.
ORSI, Carlos. O livro dos milagres. Editora Unesp, 2021.
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