A filosofia da morte: dando sentido ao inevitável
- Matheus Benites
- 2 de jun. de 2024
- 6 min de leitura
Reflexões sobre a morte, com Sócrates, Epicuro, Montaigne e Byung-Chul Han
Em geral, quando encaramos um morto, ele não parece perturbado. Isso, ao menos, é bom. De todos os animais, até onde sabemos, somente os humanos sabem de sua mortalidade. Somos especialmente ligados à vida por constatarmos que ela é finita, e provavelmente singular (embora existam argumentos filosóficos para a reencarnação). Esta é a origem de nossa angústia. No funeral do meu pai, citei em meu discurso um trecho da Apologia de Sócrates de Platão, no qual o personagem Sócrates, diante de sua condenação à morte, afirma que nada de ruim pode acontecer a um homem bom. Apresentei seu raciocínio, segundo o qual o que nos espera é ou o nada (como um sono sem sonhos, portanto inofensivo) ou um além. E este além, para o ser humano bom, na visão socrática, há de ser bom. Nas palavras de Sócrates:
“Morrer é uma destas duas coisas: Ou não ser mais nada e quem morreu não tem sentimento de mais nada, ou ainda, como dizem alguns, é uma espécie de mutação e de migração da alma deste lugar para um outro. Ora, se morrer equivale a não mais ter sensações e é como um sono sem sonhos, é um ganho maravilhoso, a morte. Porque penso que se alguém tivesse conseguido em sua própria memória uma tal noite em que se tivesse adormecido tão profundamente a ponto de não ter nem sombra de sonho e depois, comparadas a estas todas as noites e outros dias de sua vida, devesse dizer quantos dias e noites em todo o decurso de sua vida viveu mais felizmente e mais agradavelmente que naquela noite, eu penso que ele, fosse não um indivíduo, mas o grande Rei, encontraria muitos poucos desses dias e noites comparáveis a outros dias e noites. Se a morte é isso, então digo que é um ganho, ainda porque a própria eternidade da morte não parece realmente mais longa que uma única noite. Por outro lado, se a morte é como a mudança daqui para um outro lugar e se é verdade que nesse lugar, como contam, podem ser reencontrados todos os mortos, qual bem, ó juízes, poderia ser maior que este?”.
Mais à frente, fica clara a visão socrática de que, para o sujeito de bem, não haveria nada a temer com relação à morte:
“[...] deveis esperar a morte e ter na alma a certeza de que uma cosia é verdadeira, esta, que não é possível que ocorra nada mal a um homem de bem, nem na vida nem na morte, e tudo o que lhe acontece é oriundo da benevolência dos deuses”.
Epicuro enxergava a morte como o fim de tudo, incapaz de representar qualquer ameaça e, pelo contrário, servindo como um dado que nos faz valorizar e apreciar a vida. Em sua Carta a Meneceu, o grande filósofo afirmou:
“Habitua-te a considerar que a morte nada é para nós, já que todo bem e mal consiste em uma sensação. Donde um correto conhecimento de que a morte nada é para nós faz da vida mortal algo apreciável, não por adicionar tempo infinito, e sim por suprimir o anseio de imortalidade. Pois anda há de terrível na vida para quem compreendeu que nada existe de terrível no não viver”.
As palavras de Epicuro são acalentadoras. Sua lição de que a morte não oferece perigo é um colírio para a alma. Por outro lado, a simples ideia de abandonar a nossa experiência consciente, mesmo que não envolva perigo, constitui algo indesejado pela maioria de nós. SOmos muito apegados à nossa experiência consciente, o corpo e a mente que somos dia após dia. E nos dizem que, um dia, isso vai acabar. Como lidar com essa informação? Dormir é bom, mas se soubéssemos que não vamos acordar mais, não desejaríamos pegar no sono, nem cedo nem tarde. Martin Heidegger, na modernidade, falou da morte como um horizonte que dá sentido para a vida. A visão dos estoicos sobre a morte também é acalentadora. Marco Aurélio, em suas Meditações, a compara ao processo natural de uma azeitona que cai de uma árvore quando está pronta:
“Percorre, portanto, esse curto período de tempo em harmonia com a natureza e encerra teus dias serenamente a imitar uma azeitona que cai quando madura, a louvar a terra que a fez nascer e a agradecer à árvore que a produziu”.
Mais uma vez, quando olhamos para um morto, ele de fato não parece perturbado. Isso, pelo menos isso, é um bom sinal. Os estoicos exercitavam a lembrança constante da própria mortalidade, o famoso Memento mori (lembre-te, és mortal), de modo que a morte deixasse de representar perigo e causar ansiedade. Para os estoicos o cosmos é divino e tudo, da forma que acontece, está em ordem e foi como deveria ter sido. Se pensarmos bem, por mais que não concordemos com certos eventos, a teia de causalidade dos mesmos faz todo o sentido - só poderia ter sido assim. A nossa dificuldade reside na aceitação, em casar nossa própria vontade com a do universo. Michel de Montaigne, inventor do gênero ensaio, escreveu sobre uma experiência reveladora de quase-morte. Certa vez, passeando com seus servos, sofreu um acidente. Tombou com seu cavalo e este caiu sobre seu corpo, deixando-o em uma situação grave. Seus servos julgaram-no morto ao tentar socorrê-lo. Mas Montaigne descreve uma sensação de entrega, um estranho prazer ao ver-se morrer que é desprovido de qualquer ansiedade ou medo. Montaigne não morreu e pôde descrever com mais precisão a sensação em seu ensaio “Do exercício”. Ele afirmou:
“Deram-me inúmeros remédios que eu recusei, certo de que estava mortalmente ferido na cabeça. Teria sido, sem mentira, uma morte muito agradável, impedindo-me o enfraquecimento da razão de perceber o do corpo. Deixei-me ir ao léu, tão suavemente, de maneira tão indolente e fácil que nada sei de menos penoso”.

Nossa era, na qual todo mundo é obrigado a ser feliz e saudável, cultiva o oposto do que Montaigne está falando. A morte, para nós, é como o pior dos males possíveis. Nossa cultura idolatra a longevidade e o conforto, de modo que a morte perdeu o sentido. Morrer honrosamente, no século 20, ainda era um ideal passível de ser cultivado. Hoje em dia, por mais que, infelizmente, existam guerras, a morte faz qualquer um tremer. Conforme comenta Byung Chul-Han em Sociedade paliativa, a morte (como a dor e o desconforto) passou a ser uma inconveniência que deve ser cada vez mais combatida pela medicina, em nosso tempo globalizado. O filósofo sul-coreano escreve que:
“Heidegger é o último pensador da ordem terrena. Morte e dor não pertencem à ordem digital. Elas representam apenas perturbações. Também luto e saudade são suspeitos”.
Chul Han argumenta que somos uma civilização dos últimos homens de Nietzsche, que inventaram a felicidade e piscam os olhos, em uma sociedade paliativa que recusa qualquer conduta heróica, qualquer possibilidade de sentido à dor, que agora, segundo o sul-coreano, constitui tão somente “um mal sem sentido, que deve ser combativo com analgésicos”. O último homem é aquele que mais vive, que apenas ainda trabalha, que se regozija na ausência de sentido da modernidade. Ele quer viver para sempre sua vida fútil e positiva. Mas a pandemia da Covid-19 (período no qual A peste, de Albert Camus, tornou-se best-seller) nos colocou cara a cara com a morte, mostrando que, por mais avançada que seja a medicina, ela não pode evitar o que é espontâneo e natural. Saber viver é também aceitar a morte e afirmar a finitude, no momento que ela tiver que vir, sem antecipá-la, sem temê-la, sem jogar xadrez para adiá-la quando é inevitável, como faz o cavaleiro do filme O sétimo selo. Se a vida fosse eterna, teríamos tempo para fazer tudo e não precisaríamos priorizar nada. Nossa vida não teria sentido. O grande cineasta russo Andrei Tarkóvski defendeu, em seu livro Esculpir o tempo, que a função da arte é nos preparar para a morte, nos elevando espiritualmente. Um dos efeitos da arte trágica, por exemplo, é nos acostumar com uma disposição sublime. Fazer-nos cultivá-la frente os males de nossas próprias vidas. É o que ensina Schiller em seu ensaio Sobre o sublime: quando não podemos contra as forças da natureza, apegamo-nos ao nosso "eu espiritual”, nossa inteligência, que é inabalável, mesmo na morte. Acredito que todas essas perspectivas oferecem uma visão mais assertiva sobre como encarar a certeza da morte - de nossa própria e de nossos entes queridos. Pelo menos, ajudaram a mim, um jovem que pensa demasiadamente sobre a morte. Para aqueles que tiverem curiosidade em explorar a morte da perspectiva ateísta, recomendo este vídeo do meu canal do YouTube. Saber morrer é saber viver.
Referências
AURÉLIO, Marco. Meditações. São Paulo – SP: Edipro, 2019.
CHUL-HAN, Byung. Sociedade paliativa. Petrópolis – RJ: Vozes, 2021.
EPICURO. Cartas e máximas principais. São Paulo – SP: Penguin Companhia das letras, 2020.
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. São Paulo – SP: Editora 34, 2021.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. Porto Alegre – RS: Editora LPM, 2016.
PLATÃO. Apologia de Sócrates. São Paulo – SP: Edipro, 2019.
SCHILLER, Friedrich. Do sublime ao trágico. São Paulo – SP: Autêntica Editora, 2011. Organização: Pedro Süssekind.
TARKÓVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. Editora Martins Fontes. São Paulo – SP: Editora Martins Fontes, 2010.




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