A filosofia intuicionista de G.E. Moore: o bom como simples e indefinível
- Matheus Benites
- 27 de ago. de 2024
- 8 min de leitura
Atualizado: 20 de out. de 2024
No primeiro capítulo de sua obra-máxima Principia Ethica (1903), o filósofo britânico G.E. Moore, um dos pilares da filosofia analítica ao lado de Bertrand Russell e Wittgenstein, defendeu duas teses fundamentais sobre a bondade. Uma tese metafísica e uma tese epistemológica. A primeira delas é que o “bom” é simples e indefinível. Nas palavras do filósofo: “nada existe que possamos substituir por bom; e é isso que quero dizer, quando digo que bom é indefinível” (MOORE, 1998, p. 106). Não é possível definir o “bom” com termos que não sejam ele mesmo. Tal erro é caracterizado por Moore como “a falácia naturalista”.
Grandes pensadores da ética como John Stuart Mill e Herbert Spencer teriam incorrido nesta falácia. O primeiro tentou definir o “bom” em termos de prazer ou felicidade, através de sua concepção utilitarista, na qual as ações são boas na medida em que promovem a maior felicidade para o maior número de pessoas. Para Moore, essa tentativa de definir o “bom” a partir de algo natural, como o prazer ou bem-estar, é inadequada, pois o “bom” não pode ser reduzido a nenhuma outra propriedade natural ou psicológica. Herbert Spencer, por outro lado, tentou vincular o conceito de “bom” ao mais favorável à evolução e à sobrevivência, afirmando que aquilo que contribui para a adaptação e para o progresso evolutivo é moralmente bom. Moore também criticou essa visão, argumentando que, mesmo se soubéssemos que algo contribui para a evolução, isso não significa necessariamente que seja bom. A maneira de identificar a falácia é observar que se torna uma tautologia dizer que o prazer é bom, se na verdade com isso se diz apenas que o prazer é prazeroso. Claramente, quando afirmamos que o prazer é bom, estamos nos referindo a algo maior que o prazer de que o prazer participa, o “bom”. Este é o célebre argumento da pergunta em aberto, que Moore emprega para denunciar a falácia no raciocínio reducionista do “bom” (ou de qualquer outra propriedade não-natural).

George Edward Moore
No capítulo 1, “O objetivo da Ética”, Moore também escreve:
Minha posição é que bom é uma noção simples, como “amarelo” é uma noção simples; que da mesma forma que você não pode, seja lá como for, explicar a alguém que ainda não saiba o que é o amarelo, da mesma forma você não pode explicar ainda o que o bom é (MOORE, 1998, p. 104).
E mais adiante, ele acrescenta:
Mas amarelo e bom, dizemos nós, não são complexos: são noções da espécie mais simples, de que são compostas definições e com as quais cessa a possibilidade de ulteriores definições (MOORE, 1998, p. 104).
Moore argumenta, portanto, que o “bom” é uma qualidade não natural, algo que podemos reconhecer intuitivamente, mas que não pode ser definido ou reduzido a qualquer outra coisa. Isso nos leva à segunda tese fundamental de Moore, a tese epistemológica: o conhecimento do “bom” é dado pela intuição moral (ou intuição ética). Temos uma capacidade intuitiva para reconhecer a bondade de forma imediata, sem a necessidade de intermediários. Segundo Moore, essa intuição moral não é uma emoção ou um sentimento subjetivo, mas sim uma forma de apreensão direta de uma qualidade (ou propriedade) objetiva do mundo.
O Principia de Moore inaugurou toda uma área nova da Filosofia: a Metaética, que busca investigar as origens e fundamentos da Ética. Ao passo que muitos pensadores da metaética se afastaram do intuicionismo de Moore, como os emotivistas e seus herdeiros, a vertente do intuicionismo voltou a ganhar forca na Academia no começo do século XXI, com filósofos como Russ Shafer-Landau, Robert Audi e Michael Huemer. Eis como as intuições são definidas por Michael Huemer em seu livro Ethical Intuitionism (2008):
Uma aparência intelectual inicial é uma “intuição”. Isto é, uma intuição de que P é um estado da aparência de P para alguém de que P não depende de inferência de outras crenças e que resulta do pensamento sobre P, em oposição à percepção, lembrança ou introspecção. (HUEMER, 2008, p. 102. Tradução Livre).
Essa visão preserva a defesa mooreana original de que a intuição não provém do raciocínio, por meio de inferências, nem do sentimento. Em vez disso, é uma aparição imediata na mente, que diz “P é bom” ou “P é ruim”.
Contrariando a tradição, Moore sustenta ainda, neste capítulo, que o objetivo da Ética não é a prática, e sim o conhecimento. A pergunta sobre o que possui valor intrínseco, segundo ele, vem antes da pergunta sobre o que devemos fazer. Isso evidencia sua importância para a fundamentação de uma área própria de conhecimento a respeito dos fundamentos da ética, que se tornou a metaética, conforme eu mencionei há pouco. Segue uma passagem do capítulo que aborda esta posição:
[…] muitos filósofos éticos estão dispostos a aceitar como uma definição adequada de Ética a afirmação de que ela trata da questão do que é bom ou mau na conduta humana. Eles sustentam que suas indagações estão, propriamente, confinadas à conduta ou à prática; eles sustentam que o nome “filosofia prática” cobre todas as questões com as quais se relacionam.
Se a Ética manteve-se preocupada com a conduta e a normatividade na vida prática depois de Moore, isto foi porque, a partir do Principia Ethica, a área da Metaética foi inaugurada a partir de sua reivindicação pelo trabalho filosófico de indagar-mo-nos sobre a proveniência do saber ético. Por que é importante estudar o intuicionismo ético? Ele é uma doutrina que advoga pelo realismo moral e que parece estranha a muitos filósofos. John Mackie, por exemplo, argumentou que é “totalmente diferente da nossa forma comum de conhecer todo o resto” (MACKIE, 1977, p. 41. Tradução livre). Mackie tem um problema fundamental com o que ele vê como a força inerentemente “motivacional” das propriedades morais. O que Mackie quer dizer é que as intuições éticas podem ter o poder de nos motivar, ao mesmo tempo que são difíceis de verificar, se verificáveis. Portanto, segundo ele, provavelmente não são confiáveis. Você pode verificar sua intuição de que você está vivo medindo seus batimentos cardíacos, movendo-se na frente de um espelho ou conversando com outras pessoas. Mas como alguém verificaria uma intuição de bom ou ruim? Essa pessoa ainda pode conversar com outras pessoas sobre sua intuição, ou comparar essa intuição com outra intuição. As intuições éticas podem ser verificadas assim como as intuições de eventos empíricos, mesmo que a experimentação seja limitada. A principal diferença é que os objetos das intuições éticas (fatos ou propriedades morais) são não-físicos, indefiníveis e irredutíveis – mas ainda são, no entanto, reais. As aparências intelectuais não são diferentes, neste aspecto, das aparências perceptivas. Michael Huemer argumenta que Mackie não tem problema em admitir intuições epistêmicas. Todo raciocínio envolve intuições que validam o raciocínio. O que Mackie revela, segundo Huemer, é seu preconceito com a ética. Um preconceito que provém da guinada do cientismo subjetivista e relativista da filosofia analítica e continental no século XX. O relativismo moral pressupõe o subjetivismo.
A falácia subjetivista consiste em confundir o que quer que as pessoas acreditem ser verdade com isto ser verdade. O subjetivismo reduz propriedades morais a propriedades psicológicas e suas relações. Dizer que algo é correto, para o subjetivista, é tão somente afirmar que a sociedade aprova algo. O relativismo subjetivista implica que a sociedade é infalível. Segundo Michael Huemer, “o relativista cultural não tem críticas a fazer aos padrões morais que permitiram aos nazistas fazer o que fizeram” (HUEMER, 2008, p. 51). Afirmar que o nazismo é errado já é situar-se no território do realismo moral. O relativista não pode dizer nada contra a sociedade nazista. Mas por que a maioria dos relativistas ainda pensa que o nazismo é errado? Talvez por terem intuições éticas que o afirmem. É difícil enxergar plausibilidade no pensamento relativista que afirmasse que Oskar Schindler, um humanista que salvava judeus da morte na Alemanha nazista, é imoral. Poderia Oskar Schindler ser visto como o vilão do filme A lista de Schindler de Steven Spielberg? Para o relativista, sim. Mas o relativista falha em lidar com o desconforto provocado por sua posição, uma vez que ele não tem argumentos contra o nazismo ao mesmo tempo que “sabe” que o nazismo deve ser considerado errado. Uma discussão sobre o aborto ser certo ou errado deveria ser, segundo o relativismo, uma discussão pura e simplesmente sobre se é aprovado por nossa cultura ou não. Mas não é assim que as pessoas tratam o assunto na realidade. Para virtualmente qualquer pessoa, é estranho pensar que debates morais sejam debates tão somente a respeito de quais condutas devam ser adotadas ou não. Portanto, o relativismo moral é falso.
Praticamente todas as culturas humanas ao longo da história acreditaram na existência de valores objetivos, e hoje muitos que não acreditam nisso ainda agirão como se fossem reais. Como aponta Huemer, as pessoas em nossa sociedade que acreditam que a moralidade é uma ilusão aparecem como defensores habituais do erro da guerra do Iraque, ou da clonagem humana, ou do tráfico humano (HUEMER, 2008, p. 2).
Retornando a Moore, ao final do capítulo, o filósofo esclarece que todas as relações do “bom” com outras coisas são de duas, e somente duas espécies: “[…] elas afirmam em que grau as próprias coisas possuem esta propriedade ou, então, afirmam relações causais entre outras coisas e aquelas que a possuem” (MOORE, 1998, p. 131). Por fim, Moore defende a existência de diferentes graus nos quais as coisas podem possuir a propriedade “bom”. Moore resume:
Finalmente, ao considerar os diferentes graus nos quais as próprias coisas possuem esta propriedade, tomamos em consideração o fato que um todo pode, possuí-la em grau diferente do daquele que é obtido por somar os graus nos quais suas partes os possuem (MOORE, 1998, p. 131).
A alternativa robusta ao intuicionismo dentro do realismo moral é o naturalismo, o mesmo que Moore já caracterizava como falacioso. Naturalistas éticos reduzem propriedades morais como “bom” a naturais, conforme vimos nos casos de Mill e Spencer. Desde Tales de Mileto, que buscou explicar a realidade reduzindo-a à água, a tendência predominante na Filosofia Ocidental foi o reducionismo. Ao passo que Tales sustentava que tudo era fundamentalmente água, muitos pensadores contemporâneos tendem a pensar que tudo é físico, ou natural (aquilo que os métodos das ciências empíricas podem investigar). O que G.E. Moore e intuicionistas propõem é que existem certas propriedades (entre elas as morais) que são simples e indefiníveis fatos brutos, e que portanto não podem ser reduzidas a propriedades naturais. O naturalismo reducionista, conforme vimos, tenta explicar os termos e propriedades morais inteiramente em termos de propriedades naturais, como estados psicológicos ou fatos biológicos (como já faziam Mill e Spencer, criticados por Moore). Por outro lado, o naturalismo não-reducionista aceita que as propriedades morais são naturais, mas argumenta que elas não podem ser reduzidas a ou explicadas por propriedades não-morais. Se supormos que o argumento da pergunta aberta de Moore é verdadeiro, apenas o naturalismo não-reducionista pode resistir ao seu escrutínio.
Em seu livro Robust Ethics (2008), o naturalista não-reducionista Erik Wielenberg relembra a afirmação de seu professor Thomas Ryckman, segundo a qual “ou G.E. Moore está certo, ou não existe tal coisa como a Ética” (WIELENBERG, 2008, p. 1. Tradução livre). Assim, “neste desacordo entre Moore e os thaleanos dos dias de hoje,” afirma Wielenberg “eu me alio a Moore” (WIELENBERG, 2008, p. 2. Tradução livre).
Artigo apresentado por Matheus Benites como comunicação no congresso do Departamento de Filosofia da PUC-Rio - XXV SAF (Semana de Alunos de Pós-graduação em Filosofia 2024).
Link da programação do congresso: http://www.fil.puc-rio.br/wp-content/uploads/2024/08/XXV-SAF-PUC-Rio-PROGRAMAÇÃO-OFICIAL-26-a-30-de-AGOSTO-de-2024.pdf
Bibliografia
HUEMER, M. Ethical Intuitionism. Hampshire, Palgrave Macmillan: 2008.
MACKIE, J.Ethics: Inventing Right and Wrong, Harmondsworth, Penguin: 1977.
MOORE, G.E. Principia Ethica. São Paulo, Ícone Editora: 2017.
ROGAN, T. TIMMONS, M. Metaethics after Moore. Oxford, Oxford University Press: 2006.
WIELENBERG, Erik. J. Robust Ethics. USA, Oxford University Press: 2014.
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