Conservadorismo fenomênico: o antídoto de Michael Huemer contra o ceticismo radical
- Matheus Benites
- 19 de mai. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 12 de jun. de 2024
O filósofo norte-americano Dr. Michael Huemer (University of Colorado) é um dos grandes defensores do senso comum quando se trata de epistemologia e ética. Segundo ele, a moral, por exemplo, é algo objetivo e verdadeiro, que seres humanos conhecem por intuição. O fato de, no dia a dia, tratarmos a moral como se fosse real é um forte indício de que ela provavelmente é mesmo real. Quando, por exemplo, afirmamos coisas como "Torturar bebês indefesos é errado", não estamos expressando tão somente uma atitude negativa a respeito da tortura de bebês. Parece ser o caso em todos os mundos possíveis, que torturar bebês inocentes é errado. Ou quando duas pessoas debatem sobre o tema do aborto, uma defendo a prática e outra condenando, elas debatem como se suas posições fossem a verdade,e não meramente uma opinião. Na filosofia, ganha-se crédito por defender coisas que se distanciam de nossa experiência concreta. O movimento de Huemer é, por sua vez, o de retorno a ela, de uma reivindicação da dignidade epistêmica do senso comum.

Dr. Michael Huemer
O ceticismo radical na filosofia moderna
Você já deve ter tido o seguinte pensamento: “e se só eu existo?”. “E se o mundo exterior não for real?”. Historicamente, na filosofia moderna, Descartes foi o primeiro a sugerir esta possibilidade, para em seguida derrotá-la. Descartes levantou a possibilidade de que tudo o que percebemos pode ser uma ilusão, criada por um gênio maligno ou um deus enganador. Ele imaginou que tal entidade poderia estar manipulando nossas mentes para nos fazer acreditar em coisas que não são verdadeiras. Portanto, ele considerou a hipótese de que o mundo exterior, juntamente com todas as nossas percepções sensoriais, poderia ser uma construção enganosa.
No entanto, Descartes não ficou satisfeito com essa dúvida extrema. Ele procurou uma base para o conhecimento que não pudesse ser questionada. Ao refletir sobre o próprio ato de duvidar, ele concluiu que, para duvidar, é preciso existir como uma entidade pensante. Daí a famosa frase "Cogito, ergo sum" (Penso, logo existo). Ao estabelecer a existência do eu pensante como uma certeza indubitável, Descartes acreditava ter encontrado uma base sólida sobre a qual poderia reconstruir o conhecimento humano. A partir desse ponto, ele avançou para provar a existência de Deus e, por extensão, a confiabilidade do mundo exterior, argumentando que um Deus perfeito não permitiria que fossemos constantemente enganados por ilusões sensoriais. O argumento de Descartes para deus é equivocado e eu já o abordei em meu canal do YouTube. Mantendo o foco no escopo do presente artigo, vamos analisar como G.E. Moore e Michael Huemer lidam com o problema sem apelar para um deus. Mas antes, é preciso que nos detenhamos um pouco sobre, talvez o principal dos filósofos modernos a incorrer e popularizar o solipsismo, o bispo anglicano George Berkeley.
Berkeley argumenta que a realidade consiste apenas em percepções e ideias na mente, negando a existência de uma matéria independente da mente. A máxima de Berkeley, "esse est percipi" (ser é ser percebido), resume sua visão de que não podemos conceber a existência de um objeto sem que ele seja percebido por alguém. É famosa a anedota de Berkeley: "Se uma árvore cai na floresta, e ninguém está lá para testemunhar, ela faz barulho?". Berkeley também questiona a noção de causalidade material, sugerindo que atribuir causalidade a objetos materiais é equivocado, já que as únicas causas que podemos realmente conhecer são aquelas entre ideias. Ele propõe que a regularidade observada no mundo é ordenada por Deus, a mente suprema, garantindo a consistência das percepções. Além disso, Berkeley desafia a confiança nas percepções sensoriais como meio de conhecer a realidade externa, argumentando que nossas percepções sensoriais não nos dão acesso a um mundo material, mas apenas a ideias.
Naturalmente, este ceticismo radical de Berkeley recebeu várias críticas. Uma crítica comum é que sua teoria leva a um solipsismo, a ideia de que apenas a própria mente existe, já que não há garantia da existência de outras mentes ou de um mundo externo. Outra crítica é que sua dependência de Deus como garantidor da consistência das percepções não é empiricamente verificável e é vista como uma solução ad hoc para problemas em sua teoria. Além disso, muitos filósofos argumentam que o senso comum e a ciência pressupõem a existência de um mundo material independente, tornando a perspectiva de Berkeley difícil de conciliar com a prática científica e a experiência cotidiana. Berkeley e idealistas posteriores fomentaram o fantasma do ceticismo sobre o mundo externo, que ocasionalmente assombra um pequeno grupo de filósofos aqui e ali (além de pessoas diagnosticadas com transtornos mentais).

George Berkeley
Em seu "Principia Ethica" (1903), G.E. Moore apresentou um famoso argumento contra o ceticismo do mundo externo, conhecido como o "argumento do bom senso" ou "argumento da mão". Ele tentou refutar a posição cética que questiona se podemos realmente ter conhecimento do mundo exterior, sugerindo que, na verdade, sabemos bastante sobre ele. O argumento de Moore é simples e intuitivo. Ele afirmava que sabemos que coisas como "mãos" existem. Como prova disso, ele simplesmente levantava uma de suas mãos e a mostrava, afirmando que estava apresentando uma prova empírica direta da existência de mãos e, por extensão, do mundo exterior.
O raciocínio subjacente é que, embora possamos questionar a validade de nossas percepções e experiências sensoriais em certos contextos filosóficos, o fato de podermos perceber e usar nossas mãos em atividades cotidianas é uma evidência tão direta e óbvia de sua existência que é irracional duvidar disso. Moore argumentava que, embora o ceticismo possa ser uma posição filosófica interessante para se discutir, não é algo que possamos levar a sério em nossas vidas cotidianas, onde confiamos naturalmente em nossos sentidos e experiências sensoriais para interagir com o mundo ao nosso redor.

G.E. Moore
Michael Huemer e o conservadorismo fenomênico
Em "Ethical Intuitionism" (2008) e em diversos artigos, Michael Huemer cunhou o princípio do conservadorismo fenomênico. Basicamente, este princípio defende que, a menos que tenhamos boas evidências do contrário, há justificativa para defender que o que parece ser o caso é o caso.
Se parece a S que p, então, na ausência de invalidadores, S tem pelo menos algum grau de justificativa para acreditar que p.
PC If it seems to S that p, then, in the absence of defeaters, S thereby has at least some degree of justification for believing that p.
Portanto, podemos aplicar o princípio ao atual problema sobre a existência do mundo externo do seguinte modo:
Parece que o mundo exterior existe. Historicamente, toda a humanidade agiu como se ele existisse. No dia-a-dia, ele parece real. Não há um argumento suficientemente forte para pensar o contrário diante da força dessas evidências, logo temos justificação para acreditar que o mundo exterior é real.
Independentemente do que alguém possa pensar sobre o intuicionismo ético de Michael Huemer, há de se considerar que este princípio fornece um ponto de partida válido e robusto para filósofos e aventureiros do pensamento saberem direcionar o seu foco para problemas mais desafiadores e pertinentes do que algo como a dúvida sobre o mundo externo. Além do mais, ele reduz o escopo de nossa dor de cabeça.
Referências
HUEMER, Michael. Ethical Intuitionism. Palgrave Macmillan, Hampshire: 2008.
HUEMER, Michael. Compassionate Phenomenal Conservatism, in Philosophy and Phenomenological Research 74 (2007): 30-55.
MOORE, G.E. Principia Ethica. Ícone Editora, São Paulo —SP: 2017.
DESCARTES, René. Discurso do método. LPM, São Paulo —SP: 2016.
Na verdade, o Huemer cunhou o conservadorismo fenomênico (PC) no seu livro "Skepticism and the Veil of Perception" de 2001 (especificamente na página 99). Hoje em dia, existe uma literatura crescente sobre o PC como, por exemplo, "Seemings and Justification: New Essays on Dogmatism and Phenomenal Conservatism" editado pelo Chris Tucker, "Seemings the Foundations of Justification: A Defense of Phenomenal Conservatism" do Blake McAllister e "Seemings and Epistemic Justification: How Appearances Justify Beliefs" do Luca Moretti (este terceiro tem somente 90 páginas e tem ótimas referências sobre o assunto, então serve como boa introdução ao PC). Conservadorismo fenomênico über alles!